REVISTA ISTOÉ
Uma mala com R$ 1 milhão
Os novos documentos do processo no STF mostram que o caixa 2 do PT não foi usado apenas para o pagamento de dívidas de campanha, como sempre sustentaram o ex-tesoureiro do partido, Delúbio Soares, e toda a cúpula petista na tentativa de qualificar o caso como crime eleitoral, o que possibilitaria a aplicação de penas mais brandas contra eles. Em 9 de julho do ano passado, às 14 horas, em depoimento prestado na 1ª Vara Federal Criminal de Porto Alegre, o contador David Stival, membro da Executiva Regional do PT no Rio Grande do Sul, contou, que pelo menos uma boa quantia dos “recursos não contabilizados pelo partido” viajava livremente pelo País até chegar a destinos improváveis. Eles irrigaram, por exemplo, as contas bancárias de fornecedores do Fórum Social Mundial, criado por movimentos de esquerda para fazer frente ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça. No depoimento, Stival afirmou – numa posição inédita entre os dirigentes do partido – ter usado esse dinheiro suspeito para pagar “dívidas históricas” do Fórum, organizado pelo PT de Porto Alegre, que costuma ter o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como a estrela maior. O depoimento de Stival é bastante detalhista. Ele diz que, terminada a eleição de 2002, o PT gaúcho estava com uma série de dívidas e que precisou recorrer à direção nacional do partido em busca de recursos. Afirmou que procurou o deputado José Genoino (SP), então presidente do PT, e que foi apresentado ao secretário nacional de Finanças, Delúbio Soares. Uma surpresa esperava Stival no encontro com Delúbio, que prometera lhe repassar R$ 1 milhão.
“Ele (Delúbio) pediu para buscarmos o dinheiro, mas não nos disse que o dinheiro seria em cash e a gente ficamos (sic) preocupados com isso”, relatou Stival. “Ele disse que teria que ser assim porque se tratava de um empréstimo feito pela Direção Nacional e que não poderia ser contabilizado. Disse que o empréstimo era do Banco Rural ou do BMG, mas que nós não poderíamos contabilizar aquele dinheiro.” O que seria uma solução virou então uma fonte de problemas, segundo a versão do dirigente do PT gaúcho, depois que ele desembarcou em Porto Alegre carregando uma mala com R$ 1 milhão. “Não podíamos pagar as dívidas de campanha com aquele dinheiro. As dívidas estavam todas com notas a pagar, registradas na contabilidade oficial do partido”, afirmou. Ainda diante do juiz, o dirigente regional do PT narrou o que foi feito do dinheiro. “Acabamos pagando fornecedores de outras dívidas históricas do Fórum Social Mundial, dívidas que não estavam na contabilidade oficial. O dinheiro nem entrou na sede do partido.”
Um dos principais desafios do ministro Joaquim Barbosa em relação ao Mensalão do PT é a identificação da origem dos recursos movimentados irregularmente. Até agora, os principais envolvidos no escândalo diziam que o caixa 2 petista não usava dinheiro público. Os novos depoimentos prestados à Justiça mostram que o Ministério Público e a Polícia Federal podem ter razão quando afirmam que o “núcleo empresarial do Mensalão, comandado pelo publicitário Marcos Valério, retirou dinheiro de órgãos administrados pelo PT.”
A falsa campanha publicitária
Desde o início das investigações, as suspeitas mais fortes nesse sentido levavam à sede do Banco do Brasil, que tinha entre as agências que cuidavam de sua conta publicitária a DNA, de Valério. A CPI dos Correios, que investigou também o Mensalão, chegou a estabelecer um elo entre o BB e o caixa 2 petista, alegando que o banco pagara por campanhas publicitárias não realizadas para a Visanet, empresa do qual o banco é sócio. Por falta de provas, essa tese acabou não prosperando. Agora, uma testemunha que acompanhou de perto o destino dado na época às verbas publicitárias do BB revela detalhes de como esse esquema de fato funcionou, mas através de outra empresa. Funcionária do Núcleo de Mídia do BB na época do escândalo, a jornalista Danevita Ferreira de Magalhães prestou depoimento à Polícia Federal em 1º de abril de 2008. Nele, descreve um desvio de R$ 60 milhões dessas verbas. Segundo ela, a agência DNA, de Valério, recebeu o dinheiro do Banco do Brasil para a elaboração e veiculação de uma campanha publicitária BB/Visa Electron. O problema, disse Danevita, é que a campanha jamais foi feita e tampouco veiculada. “Quando o escândalo explodiu, Marcos Valério mandou queimar as notas frias emitidas contra o Banco do Brasil”, afirmou a jornalista.
No Núcleo de Mídia do Banco do Brasil, durante a gestão do ex-diretor de marketing Henrique Pizzolato, a função de Danevita era exatamente acompanhar a execução dos contratos de publicidade e encaminhar os pagamentos quando as campanhas fossem veiculadas. Ela explicou ao delegado Luís Flávio Zampronha que, no caso do contrato com a DNA, chegou a alertar sobre a não realização dos serviços e acabou sendo afastada de suas funções por causa disso. “A campanha, no valor aproximado de R$ 60 milhões, de fato nunca foi veiculada”, disse Danevita. “As notas frias foram feitas apenas para justificar os pagamentos.” De acordo com Danevita, “o próprio diretor de mídia da agência DNA Propaganda, Fernando Braga, afirmou que esta campanha do Banco do Brasil/Visa Electron não tinha e nem iria ser veiculada.” Também está entre os novos documentos no processo do STF um laudo do Instituto Nacional de Criminalística, da PF, de 2009, confirmando que houve outros desvios de dinheiro público nos contratos da DNA com o BB. “A empresa DNA não repassou aos cofres públicos do BB as bonificações denominadas ‘bônus de volume’ que recebeu”, diz o laudo. A DNA de Valério recebeu R$ 37,6 milhões a título de bonificações só em contratos com o BB.
As notas frias do PTB
A grande força-tarefa de investigação montada em todo o Brasil pelo STF envolveu órgãos de várias esferas, inclusive a Receita Federal. Uma das missões do Fisco foi tentar comprovar a suspeita de que vários partidos políticos envolvidos no esquema fraudavam notas fiscais apresentadas à Justiça Eleitoral. As primeiras provas nesse sentido surgem entre as 69 mil laudas do processo do Mensalão. Em março de 2009, a Procuradoria-Geral da República enviou ao Supremo cópias de representações fiscais da Receita, entre elas uma de novembro de 2007. O documento mostra notas fiscais fraudadas pelo PTB, justamente o partido do ex-deputado Roberto Jefferson, o histriônico autor das primeiras denúncias da existência do Mensalão (leia quadro na pág. 40). Em seu relatório final, a Receita acrescenta a Jefferson, que foi cassado durante o escândalo do Mensalão, uma nova qualificação: a de responsável pela armação das notas falsas.
Os auditores fiscais comprovaram que o PTB apresentou notas frias para justificar a origem de pelo menos R$ 858 mil. Uma das empresas citadas na representação fiscal é a VideoMaker Produções. José Antônio Sarmento, sócio da empresa, confirmou em depoimento à Receita ter sido procurado pelo advogado do PTB, Itapuã Messias, que lhe apresentou um contrato de prestação de serviços. Mas a VideoMaker, segundo Sarmento, não fechou o negócio com o partido de Jefferson e “nunca prestou serviços para a referida agremiação política”, diz ele. Notas fiscais da empresa, porém, constavam da prestação de contas do PTB. Outros documentos da Receita mostram que a estratégia das notas frias não é exclusividade do PTB. Várias empresas registradas na escrituração do PP, por exemplo, constam no cadastro da Receita como inativas, omissas ou inaptas. Não poderiam, portanto, ter prestado serviços e emitido documentos fiscais. Um dos responsáveis citados pela Receita é o deputado distrital Benedito Domingos (PP), também investigado por receber R$ 6 milhões do esquema do Mensalão do DEM, no Distrito Federal. Nos novos documentos encaminhados ao ministro Joaquim Barbosa, a Procuradoria-Geral da República informa ao STF que há também notificações referentes ao PT, ao PMDB e ao extinto PL. Em todos os casos, os partidos foram pilhados usando notas frias em suas prestações de contas.
A versão dos ex-ministros
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva alega com frequência que só soube da existência do Mensalão depois que o escândalo se tornou público. O ex-deputado Roberto Jefferson sempre disse o contrário. Assegura que ele próprio informou o presidente sobre a distribuição de dinheiro que o PT vinha fazendo no Congresso. Nos novos depoimentos já em poder do relator Joaquim Barbosa, três ex-ministros de Lula confirmam a versão de Jefferson. Em 12 de março do ano passado, diante do juiz Alexandre Bulk Madrado Sampaio, da 4ª Vara Criminal da Justiça Federal em Minas Gerais, o ex-ministro do Turismo Walfrido dos Mares Guia afirmou que em março de 2005, em uma reunião da qual participaram o então ministro Aldo Rebelo, da Coordenação Política, e o líder do PTB José Múcio Monteiro, Roberto Jefferson relatou ao presidente Lula que o PT estaria repassando recursos aos parlamentares em troca de apoio aos projetos do governo. “O presidente ouviu um breve relato feito por Roberto Jefferson, mas não disse nada a respeito”, afirmou Mares Guia. Em seguida, o juiz perguntou se o ex-ministro poderia dizer exatamente o que ouviu naquela reunião e Mares Guia declarou: “O presidente perguntou a Jefferson como estava o PTB e o deputado respondeu: estou preocupado porque o PTB não consegue os cargos pleiteados e já negociados e tem essa conversa que tem recursos sendo distribuídos a partidos no Congresso.” Mares Guia deixou o governo em 2007, depois que ISTOÉ revelou seu envolvimento com o chamado Mensalão Tucano.
Versões semelhantes foram apresentadas em 27 de maio do ano passado, quando os ex-ministros Aldo Rebelo e Márcio Thomaz Bastos (Justiça) também depuseram como testemunhas na 2ª Vara Criminal Federal. “No final de uma audiência com a direção do PTB, quando todos já estavam em pé, o deputado Roberto Jefferson de alguma forma revelou ao presidente que haveria algo parecido com o que depois ele nominou de Mensalão”, afirmou Rebelo à juíza Sílvia Maria Rocha. Ainda em seu depoimento, o ex-ministro disse que, terminada a reunião com o PTB, Lula lhe pediu para procurar mais informações sobre a denúncia feita por Jefferson. Thomaz Bastos afirmou que não esteve na reunião, mas soube mais tarde que o presidente havia pedido uma investigação sobre os fatos relatados por Jefferson. O pedido, segundo Bastos, não foi feito a ele, que comandava a Polícia Federal. O juiz pergunta ao ex-ministro se a investigação foi formal ou informal e ele responde: “Acredito que tenha sido formal, porque foi objeto de resposta formal da Casa Civil.”
É provável que os ex-ministros tenham que fazer novos depoimentos para esclarecer contradições com antigos colegas de governo. Na maioria dos documentos, até agora inédita, em poder do STF estão também os testemunhos da ministra Dilma Rousseff e do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu. O ex-ministro nega que tenha feito qualquer investigação a pedido do presidente Lula e a atual ministra afirmou com todas as letras que na Casa Civil não existem registros sobre suposta investigação. Isso significa que diante de uma denúncia tão grave o presidente pediu apenas uma investigação informal ou alguém está mentindo, Dilma, Dirceu ou Thomaz Bastos. Como todos, exceto Dirceu – que é o principal réu no processo do Mensalão –, prestaram depoimento como testemunhas, aquele que faltou com a verdade poderá ser processado pelo ministro Barbosa.
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