terça-feira, 15 de junho de 2010

PARTIDO E GOVERNO NO LIQUIDIFICADOR


por Míriam Leitão de O Globo-

No Brasil, perdeu-se a noção de como é grave essa delinquência política. Não houve punição alguma quando o PT foi apanhado comprando dossiê no Hotel Ibis em São Paulo. Não haverá agora.

O ponto decisivo foi setembro de 2006, quando um grupo formado por dois graduados funcionários do comitê de campanha de reeleição do presidente Lula, um diretor do Banco do Brasil, o chefe de comunicação da campanha do então candidato do PT ao governo do estado de São Paulo, pessoas da copa e cozinha do presidente foram apanhados tentando comprar um dossiê contra adversários. Dois deles estavam com R$ 1,7 milhão na mão, em dinheiro vivo, sem origem comprovada.

Eles foram presos, depois soltos, o diretor do Banco do Brasil foi demitido com muitos elogios, o suposto chefe da operação é hoje próspero fazendeiro. A reação da ocasião foi tentar negar as óbvias ligações com a estrutura da campanha presidencial, o presidente Lula chamou-os de "meninos" e "aloprados", e depois denunciou um suposto golpismo contra ele, Lula.

Os atuais indícios de que se pretendia espionar o candidato do PSDB ou que podem ter sido acessados dados sigilosos dentro da máquina da Receita Federal de um dos integrantes da direção do maior partido da oposição são a comprovação de que o que não é punido se repete. De novo, o presidente Lula usa o mesmo truque de tentar inverter a situação e colocar seu partido como vítima de uma armação.

Mais assustador do que um episódio isolado é o fato de que eles se repetem, numa clara indicação de que vão se tornando prática política no Brasil em período eleitoral. Espionar o adversário político usando escutas ilegais, acessando dados informados exclusivamente ao Setor Público e que estão protegidos por sigilo é totalmente inaceitável.

Acostumar-se a isso é começar a cavar a cova da própria democracia, que pressupõe que todos se submetam às leis e que os partidos que governam são administradores temporários e não donos da República. Usar a máquina pública para intimidar adversários políticos é um veneno letal às instituições.

Há várias formas de ameaçar a democracia. Da mais óbvia delas, o golpe de Estado, aprendemos a nos defender. Mas existem outras formas sutis de solapar a democracia, deformá-la até que ela fique irreconhecível.

O uso da máquina pública para fins partidários é uma delas. Outra, é a delinquência política reiterada e sem punição até que ela se torne parte dos usos e costumes do país.

O que torna o ambiente cada vez mais perigoso é que o Brasil não tem mais um presidente, tem um chefe político em campanha incessante. É isso que faz com que ele, em palanque, acuse a oposição de fazer "jogo rasteiro inventando um dossiê por dia".

A atitude correta do presidente deveria ser a de querer tudo esclarecido para se saber se foi realmente uma pessoa lateral na campanha da sua candidata que tomou uma atitude isolada ou parte de uma conspiração; se há funcionários públicos usando para fins políticos o acesso que têm a dados dos cidadãos.

Não há esperança alguma de que o presidente Lula se comporte como um chefe de um governo de todos. Ele é o flagrante mais explícito da mistura entre partido e governo.

A última esperança de que agisse como estadista foi em 2006. À frente nas pesquisas, com claras chances de reeleição, ele poderia ter tomado uma atitude depuradora dos maus costumes políticos que estavam se instalando em seu próprio comitê de campanha.

Como a condenação ficou apenas no levíssimo epíteto de "aloprados", tudo ficou por isso mesmo. O sistema político brasileiro foi avisado de que essa prática é aceitável, basta, se alguém for apanhado, romper um contrato de prestação de serviço, isolar temporariamente a pessoa contaminada.

O capítulo seguinte é fazer a transposição de papéis em que vítimas viram culpados, e os culpados, vítimas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário